Pontos cardeais

Do que você mais sente falta nesta quarentena?

Eu sinto falta dos meus avós. Do cheiro deles. Das cores em seus olhos. Do timbre das suas vozes e dos caminhos que as rugas fazem em suas peles.

Meus avós calados me ensinam mais do que mil discursos. Com eles, o aprendizado flui do exemplo e da constância que só quem caminha suave pela estrada de uma vida longa consegue transmitir.

Meus avós não têm mais pressa e nem urgências ligadas a tempo. Trocaram a avidez da juventude pela complacência da senioridade, e entendem que a hora do relógio não se sobrepõe ao tempo de plantar e de colher. De anunciar e de renunciar.

Com vó Odila eu aprendi que a educação pode custar caro, mas a sabedoria é inestimável. Só estudou até a quarta série e se diz burra, limitada. Mas aprendeu alta costura sozinha e faz de cabeça os cálculos necessários para se criar uma fenda lateral em um vestido. Vó Dila toca o pedal da máquina de costura enquanto estica o tecido sem perder o compasso, e conhece medidas de cavas, cavalos e cós sem consultar livro ou calculadora. Católica apostólica romana, ela me dá água benta das missas de domingo e canta hinos da arquidiocese do bairro quase todas as manhãs.

Com vô Averaldo eu compreendi que a resiliência é a qualidade mais inefável. Nordestino, metalúrgico e marido de aluguel, veio do chão de terra batida para o chão duro de fábrica. Apesar da casca grossa como a das árvores da caatinga, Averaldo é flexível por dentro: tem alma de artista, dança como um mestre-sala e escuta tango e pasodoble no radinho. Bon vivant, gosta de prato cheio, doses de Seleta, conversa fiada e cafuné. Ele tem a paciência de alguém a quem a vida disse muitos nãos, mas a amabilidade de quem aprendeu a dizer sim. Meu cabra macho do coração mole.

Com vô Alcídio eu descobri que a ternura e a tolerância, quando vêm de dentro, emanam da aura. Caipira de 1936 e sarará do olho azul, foi criado com pais separados e, entretanto, amigos. Tinha um irmão homossexual que não deixava de visitá-lo com seu companheiro. Homem que era, limpava a casa sim. Fazia café, almoço e janta sim. Sua mulher trabalhava sim. Aos 40, veio o AVC: lhe prometeram a vida em cadeira de rodas e a paralisação do lado esquerdo, mas ele voltou a andar. Lhe prometeram mais quatro anos de vida, porém mais de vinte se seguiram, e assim, eu, ele e o nosso amor crescemos juntos, apontando pássaros no quintal e cantando modas de viola com o canarinho. Com ele eu me encontro um dia, depois de todos os dias...depois do tempo...depois que a carne desencarnar.

E com vó Alda eu aprendi que a verdadeira posse está no fato de ser dona de si. Professora mineira, mulher e solteira até bem mais de trinta anos, conheceu o amor dela, Averaldo, já viúvo, em São Paulo e, por ele — e por si mesma — largou tudo. “Casar aos 40?” O que é que tem? “E os filhos? Não vem?” Não vem, e repito: o que é que tem? Vó Baixinha vive à sua maneira, na calma do seu amor tranquilo. É metódica e comedida em tudo na vida, mas no amor é tão desmedida que me transborda. E foi assim que eu logo percebi que nasci pra ser sua neta mesmo antes que ela fosse de fato a minha vó.

Sim, a quarentena desnorteia os horizontes. Mas Odila, Averaldo, Alcidio e Alda são os pontos cardeais que me orientam rumo ao fim deste ciclo. Eles são os tesouro no final dessa longa trívia e as preciosidades que justificam o sacrifício da distância. E mesmo que o afastamento perpetue a saudade, vou me lembrar: o tempo é rei, a espera é uma efemeridade e a paz e me aguarda no conforto de seus velhos abraços.

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