Uma árvore frondosa
- KzAline
- 26 de out. de 2023
- 3 min de leitura
Riacho de Santana, Bahia. 19 de agosto de 1938. Despontou no mundo Averaldo da Silva Guedes.
Vô Averaldo era da Silva: brasileiro, nordestino, casca grossa, sério e teimoso. Um clichê de mãos hábeis, pouco estudo e muito trabalho. Metalúrgico raiz, faz-tudo da vizinhança e dono de uma sabedoria tomada de assalto na luta diária pelo direito de ser como era.
Mas Vô Averaldo era também Guedes: alma e sobrenome de artista, criado em lar de pintores, cantores, poetas e compositores. Tinha vozeirão de loucutor, sambava gafieira, cantava bolero, dançava pasodoble e apreciava a arte latino-americana sem nunca ter sido educado para tal. Nelson Gonçalves, Eliana de Lima, Carlos Gardel e Elis Regina inundavam os meus domingos, e o som chiado daquele radinho de pilha foi o pano de fundo das nossas tardes em Santo André.
Meu avô foi feito de muitos pesares, mas tinha um completo desinteresse em brigar com a vida. Pelo contrário, tinha era o dom de amansar feras, sossegar dores e arrebatar amores. Seu sorriso era tão largo quanto as portas da sua casa, e sua alegria se revelava em meio de todo tipo de riqueza que não apetece a gente rica: muita comida caseira, muita bebida, muitas festas em família e muitos assentos à sua mesa. Ele era do tipo que se transbordava, se derramava e inundava outros copos e outras almas.
Wanda e Alda, Eliane e Júlio, Aline e Igor. Dois amores — cada qual em sua temporalidade —, dois filhos e dois netos. Todos viram a sua postura quase inflexível se amaciar à medida que os cabelos brancos lhe cobriam a cabeça e as crianças lhe tomavam o colo. Os filhos e as esposas conviveram com um marido e pai que era a sinopse de um livro da vida escrito a duras penas: provedor, ponta firme e enérgico. Mas os netos...ah...os netos desfrutaram o melhor de um avô sossegado e preguiçoso, que curtia uma praia até o fim da tarde, sem pressa de ver o sol se pôr, e caminhava suave pelo calçadão e pela vida cheio da tranquilidade que só a sabedoria pode proporcionar. Enfim, a doce metamorfose do tempo e da essência.
Esse coroa é o meu baú de tesouro cheio de provérbios e amuletos da sorte. Em dias de coração partido, foi dele que escutei que “pra curar a dor de um amor perdido, é só viver um novo amor encontrado”. Nas vésperas de vestibulares, exames e campeonatos, ela lançava mão de sua confiança cega no amanhã e me prometia que o melhor resultado esperava por mim. E nos dias de amargura, ele enchia o café de açúcar, a ponto de atrair formigas, e ainda dizia que elas fazem bem pra vista, afinal “ninguém nunca viu uma formiga de óculos”. Fui criada com amor, humor, paciência e irreverência. Mas, sobretudo, com beijos, abraços, cheiros, calor e ternura. Foi assim que aprendi a não ter medo de olhar no olho, jogar na cara e amar como se fosse um manifesto de coragem.
Nos últimos meses, as nossas conversas foram mais silenciosas. Na verdade, algumas foram somente orações. E mesmo que o radinho não tocasse mais, eu continuei a cantarolar sambas da Maria Rita no ouvido dele, bem baixinho, até o último dos nossos dias juntos, pois um bamba nunca deve perder o seu ritmo. Hoje, da janela dos olhos dele para fora, o céu desaba em São Caetano, em Santo André, em Riacho de Santana....até em Marte. Mas a tempestade vai passar. Porque o meu avô me ensinou que a dor não é eterna, que o sofrimento faz visita, mas não faz morada, e que a vida é bela na mesma medida em que é dura, portanto, é preciso seguir em frente e ainda que o peito arda.
21 de outubro de 2023.
Uma árvore frondosa dá frutos para sempre.

Que lindo...
Que gostoso sentir a presença dele em suas palavras. Recordei tantas doces lembranças nesta leitura, como um filme a passar, com toda a intensidade que o amor por si nos contempla dia a dia! Viva Averaldo, viva o amor.
Beijos beijos pra você amada ❤️