Carta aberta ao meu corpo
- KzAline

- 23 de jul. de 2020
- 3 min de leitura
Atualizado: 25 de abr. de 2021
Corpo meu, eu te agradeço
Por ser assim, todo feito de mim, do jeitinho que me cabe.
Por ser o marco físico da minha existência, imprimir no mundo as minhas pegadas e
delimitar cada espaço que eu escolho ocupar.
Por guardar as minhas lembranças mais preciosas nesse peito, lacradas. Por encerrar em si cada pensamento que eu não ousaria revelar, e por dissolver em lágrimas as agonias que me transbordam para que elas nunca tomem o espaço das alegrias.
Corpo meu, eu peço perdão
Pelos momentos em que desejei que você fosse de outra maneira e assumi a postura egoísta de achar que a natureza, a genética e o curso natural da vida é que deveriam te submeter às minhas vontades enquanto, na verdade, a lógica é soberanamente contrária.
Pelas vezes em que cometi a incoerência de querer espalhar a minha assinatura pelo mundo ao meu redor sem abraçar e acolher as marcas desse mesmo tempo e desse mesmo mundo na minha pele, nas minhas juntas e nas minhas expressões. Não é possível deixar grandes marcas sem deixar-se marcar.
Pelos inúmeros dias em que mirei as curvas de outras mulheres e as julguei mais bonitas. Hoje, enfim, sei que as melhores curvas são aquelas que contornam o emaranhado de sentimentos que se traduzem em mim, e ainda que largas ou estreitas, elas são feitas na medida certa para que por elas eu possa me derramar.
Pelas vezes em que te castiguei com regimes, te envenenei com remédios, te apertei com roupas ingratas ou te escondi atrás de antigas inseguranças. Hoje compreendo que esse olhar capaz de condenar corpos saudáveis é apenas mais um sinal da distorção estética que nós normalizamos, banalizamos e ignoramos em busca de outras aceitações muito mais superficiais.
Corpo meu, eu valorizo
Sua metamorfose e capacidade incansável de ceder e se reconstruir a cada intervenção. As tatuagens que cicatrizaram na pele agredida, as agulhas e piercings, os cabelos descoloridos, esticados, tingidos, domados...e todas as rebeldias já cometidas em nome da edificação da minha personalidade. Você me fez entender que toda forma corporal é transitória, e que cada centímetro que se expande ou se contrai em mim é um efeito colateral dos novos tempos que vivi e das novas convicções que adquiri.
Os calos nos meus pés, as dores nos meus joelhos e os hematomas por todas as minha quinas. Estes são reflexos generosos das linhas que desenho no ar quando danço e recordações doloridas da energia que percorre todas as minhas extremidades no palco. É preciso muita coragem para escancarar as portas de dentro de mim e permitir que os outros espiem por entre elas enquanto dançamos juntos - corpo, alma e pensamento - os sentimentos ritmados.
A maneira como você revela no meu olhar as verdades que não digo com a boca, e por emitir as gargalhadas histéricas pelas quais sou conhecida, mesmo que elas custem tanto aos meus pulmões asmáticos. E também a estatura baixa, os quadris hoje mais largos, as dobras nas costas e o rosto salpicado de veias. Porque em tudo isso, eu finalmente enxergo os traços que herdei de mulheres fortes e a história que continuarei a contar por meio dos meus descendentes.
Corpo meu, eu acolho
Suas cicatrizes, as olheiras arroxeadas e as carnes hoje mais moles. Porque entre uma celulite e outra eu me recordo das boas comidas que devorei para saciar o paladar e os olhos; em cada arranhão eu vejo um conto de aventura vivida; e em cada olhar cansado eu encerro as noites em claro, escrevendo teses, textos e reflexões. E juntas, essas felicidades desmedidas valeram cada exagero.
Corpo meu, eu prometo
Te olhar com amor e cumplicidade,
Te habitar com respeito e gratidão,
Te cuidar com carinho, amor e verdade,
E te defender de qualquer opressão que vier.
Juntos somos, estamos e continuaremos
Em mim,
Em si,
Um só.





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